
Ultimamente, já andei comentando isso por aqui, tenho feito a releitura dos livros na sequência. A primeira vez que leio é com pressa e gulodice, a segunda, na sequência, é com calma e saboreando. Imitando a tal leitura extensiva de séculos anteriores estudada por
Chartier. A leitura que se repete, se repete.
E hoje, o livro que passou por essa primeira e segunda mordida foi Virgínia Berlim de
Luiz Biajoni.
O livro é curto e encerra em si o início, o (não)desenrolar e o fim de um amor. Amor do personagem principal - cujo nome não chegamos a saber - por Virgínia, sobre quem pouco ou quase nada nos é dado a saber. O estilo é instigante, as palavras são exatas e a angústia que vai assolando o personagem magicamente toma conta do leitor.
Virgínia aparece na história como um ser insosso; "para mim, ela era como as outras; uma escriturária sem sal. Nem bonita eu a achava. Uma loira pálida, peitos pequenos, bunda caída". O autor ainda a socorre rapidamente; " Era jovem e tinha um certo frescor, umas sombrancelhas arqueadas, inquisidoras".
Mas é enfático: "
Mas no geral, era ninguém."
Essa frase perseguiu minha leitura e durante todo o desenvolver da trama eu me perguntei
quem era Virgínia.
Mas não sei, uma ninguém.
A despeito disso essa personagem beija o narrador surpreendentemente, iniciando algo confuso - e doloroso - para ele.
Como foi para Virgínia? Não sei.
A história é narrada do ponto de vista do narrador e assim como ele, ficamos limitados a figura do observador, vendo Virgínia entrar e sair do apartamento sob olhar do narrador.
O livro pode( aliás,deve)ser lido com o acompanhamento do cd que vem no encarte. Uma idéia original que consegue colocar o leitor um pouco mais profundamente no apartamento do narrador e dentro de sua ansiedade.
Um apartamento de um homem "soturno" - chamado assim por algumas namoradas e por ele mesmo - com livros e muitos discos de vinil.
Sim, vinil.
Apesar do livro não trazer localização delimitada do tempo onde se passa a história, o médico que o atente tem celular, assim, suponho que o autor colecione vinil por opção, não necessidade técnica.
Assim, sem sobre aviso, Virgínia entra na vida no narrador. Mas não se trata de um romance, de uma paixão avassaladora ou romântica da parte dela(ou se trata?). Virgínia entra e sai do apartamento do narrador algumas vezes nos dias em que ele está impossibilitado de sair.
Após o surpreendente beijo, sem compreender exatamente o que havia se passado, ele ouve música, bebe uísque e tropeça no copo, cortando furiosamente o pé.
Então temos o narrador recluso à força.
Cortado profundamente, sem equilíbrio, sem ficar em pé, um pouco ridículo. Ou seja, se não fosse um corte no pé, seria a melhor descrição para alguém apaixonado.
Curiosamente,tomado pelo corte e pela paixão,o narrador está indefeso diante do que acontece.
A mercê das dores que o imobilizam : "
o pé latejava e sentia uns calafrios. Não sabia se era por causa do pé ou por causa..."(pág.11)
Em alguns momentos tem clareza do objeto de sua dor/desequilibrio:
"
Virgínia era a causa desse ferimento, dessa confusão toda. Se não estivesse aparecido aqui eu estaria hoje, restaurado, pronto, inteiro, intacto." (pág.11)
Mas ele não está intacto.
O narrador é tomado pela ansiedade, pelo desejo da presença de Virgínia, de quem ainda não sabemos - e nem saberemos -muita coisa. Ela não fala, ela não se mostra, ela recua quando ele tenta fazer com que ela apareça.
Enquanto isso, jorra amor do narrador, mesmo quando a pia do banheiro quebra e jorra água por todo lado ( o símbolo mais sexual dentro do universo onírico), absolutamente sem controle.
Assim,de uma hora para outra, depois de uma das despedidas dela que a ele pareceu definitiva, ela morre.
"
Foi nesse domingo quente de verão que ficamos todos sabendo que Virgínia estava morta."
Todos nós: o narrador, o namorado médico, a mãe, a polícia e nós, os leitores. Sabemos que estava morta, que fora em um quarto barato de hotel e que talvez possa ter sido suicídio. O bilhete no bolso, que hora parecia poesia, hora bilhete suicida e hora receita de bolo, desaparece. Ela desaparece.
Então, com em quase todo amor, nasce de repente, dói e dá prazer, morre e cicatriza. Como o corte do narrador.
E eu terminei o livro com a sombra de Virgínia, quem era a garota de bunda caída, cabelos tingidos, tropeçando nos cadarços,que havia morrido? Por mais que eu leia e ouça o cd, acho que nunca vou saber. Nem o narrador.
Na introdução do livro o Alex Castro diz que o "Bia escreve pra caralho". Mas como eu sou uma dama, não digo essas coisas. (Mas que ele escreve pra caralho, ah, escreve.)