15 outubro 2011

Viver e não ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz

Como toda sexta feira fiz os exames cedo no Hospital do Rim, depois voltei ao ambulatório pós transplante pra consulta. Voltei à tarde pois minha consulta foi às cinco. Eu sempre marco esse horário porque dá tempo de voltar para o apartamento do meu irmão e descansar. No meu caso isso significa me jogar naquela cama maravilhosa dele, com aquele travesseiro incrível e dormir, já que geralmente fico a noite toda vendo filmes. Tempos de loucura, vocês sabem.
Antes da consulta, por vezes converso com outro transplantado: perguntamos quanto tempo temos de cirurgia, quanto está nossa creatinina, se fizemos diálise, esses papos estranhos.
Nessa sexta, conversando com uma moça e um outro paciente, lembrei:
- Ah, você transplantou um dia depois de mim....lembro de você, a gente já se viu de camisola de hospital por ai...
- (rindo) ah, é....eu lembrei: aquele dia da ecografia, né?
- isso,...blá..blá...blá...
Fiquei sabendo que ele teve doador cadáver ( essa expressão dá aflição no começo, mas depois a gente acostuma) e que o "rim irmão" ( ou seja, o outro rim do doador falecido) foi para um médico. Tanto a moça quanto ele danaram a falar do tal médico, rindo muito. Parece que o médico era cirurgião e deu o maior barraco na sala preparatória e na própria sala de cirurgia, gritou, praguejou, fez o diabo.
Pelo que entendi, todo mundo ficou conhecendo o tal cirugião-que-virou-paciente, por conta dos escândalos. Surtos mil, gente, afinal, mudar de lugar não é simples. Passar de "quem corta" pra "quem é cortado" deve ser uma tarefa enlouquecedora.
Porque ele conhece rotineiramente o que acontece com os pacientes na sala de cirurgia, ele sabe como são tratados quando estão desacordados e deve ter suas reservas. Eu não sei, e nesse caso, a ignorância é uma benção, só sei que colocaram um outro órgão em mim e ele funciona bem, ponto.
O rapaz contou que a filha do médico ia chamá-lo todo dia, porque o tal médico-e-o-monstro queria vê-lo.
Esses casos, de pessoas que se afeiçoam aos que receberam o "rim irmão", são rotineiras. Eu vi que as pessoas estabelecem uma ligação intensa. Eu disse sempre gente, é tudo muito doido.
Falamos da nossas diferentes maneiras de lidar com a questão do novo órgão e , como sempre, surgiu a questão da fé. Sempre que converso com alguém, duas coisas pintam, falamos sobre transplantados longevos e falamos de fé. Nunca encontrei ninguém que não fosse imensamente grato por essa chance, no caso dos transplantados que estavam em diálise, gratos pela liberdade.
Vejam meu caso: nunca fiz diálise, graças a Deus, coisa que tinha pavor, não fiquei na fila, ganhei um rim de um irmão que amo muito e tô aqui, lindaloiraejaponesa, feliz da vida.
Ah, sem esquecer do melhor da prosa: nós três tivemos companheiros de quarto malucos. Tropeçamos com pessoas que adoravam contar desgraça. A moça contou que ficou com uma velhinha que dizia pra ela que ainda ia doer muiiiito, que ela nem ia aguentar e que sei lá quem tinha morrido. A gente gargalhava com ela imitando a velha sacana e contando como fazia pra dar uma egípcia na doida.
Mas isso é fato: tem uma turba doida lá dentro que adora contar desgraças, com minúcias. Agora, eu francamente não entendo como alguém pode querer entrar nessa vibe de desgraça. Porque estando ali no hospital, de camisola, costurado, com dor, a gente só quer saber e pensar em coisas boas. A gente só quer curtir a fé.
E não é que tem pessoas que estão em outra via? Olhando o mundo e vendo tudo negativo.
Ah, sai pra lá, #melargamesolta, por favor.
Gente, gente, estou dizendo pra vocês, de perto ninguém é normal, Caetano foi um mestre ao sacar isso.


Eu e o Professor


No meu primeiro ano na Unicamp, nada foi como eu esperava. História não era o que eu achava...me sentia um ET quase todo o tempo, pois minha trajetória era tão diferente dos outros que não conseguia me sentir fazendo parte do grupo.
Eu vinha de escola pública, eu sempre tinha trabalhado e me via fazendo parte de um grupo que nunca tinha pago uma conta na vida, adolescentes no total sentido da palavra.
Uma hora ou outra eu cruzada alguém que também se sentia um et e a gente estranhava tudo naqueles rosados garotos burgueses.
Não que eu nao gostasse deles, até gostava, só não me identificava com praticamente ninguém. Aos poucos me ambientei e formei um grupo se seria coeso até o fim da graduação e se despedaçaria em trinta mil pedaços após a formatura, sobrando apenas aqueles que realmente tinham elaborado um laço de amizade muito profundo. Pra minha alegria, são meus amigos até hoje.
Estive a ponto de desistir, tinha passado em jornalismo também, mudaria de curso e pronto.
Mas foi ai que li o livro do Professor.
Foi o seu primeiro livro, considerado por ele até um tanto quanto ingênuo. Talvez ele tenha razão, se compararmos com os três posteriores( que, claro, li também)
Mas o livro era ótimo, inegavelmente.
O tal primeiro livro teve um impacto inesquecível nos meus vinte anos.






Me lembro de pensar que,se aquilo era fazer História, então aquilo eu queria aprender a fazer. Eu gostei de tudo: do objeto de pesquisa, da análise absolutamente peculiar das fontes, da maleabilidade única para lidar com a palavra.
Inegavelmente um grande historiador e um grande escritor.
Consegui uma bolsa trabalho, logo deveria prestar algum serviço pra unicamp. Tinha parado de trabalhar e não podia me dar ao luxo de viver de dinheiro de pai, nem combinava comigo.
Procurei Professor para auxilia-lo em sua pesquisa.Para surpresa de todos, ele aceitou. Era famosa sua recusa em aceitar bolsistas, pois efetivamente gostava da pesquisa e creio que não se via com um assistente pra fazê-la.
Talvez tenha aceitado ao ver meu jeito de deslumbrada que só as meninas de vinte anos podem fazer.( Claro, aos trinta isso se torna ridículo....rs)
Mas ao contar isso, me lembro de como fui toda sorridente pedir para ser sua bolsista, falei com ele em um lugar que nem existe mais, tomado pelas mudanças que houve no IFCH.
Ele me aceitou, mas não posso dizer que eu o tenha auxiliado.
Ele me orientou na minha primeira garimpada no Arquivo Edgard Leuenroth, comentou comigo minhas descobertas, riu de mim muitas vezes, corrigiu umas tantas, ensinou umas outras.As reuniões em que eu mostrava minhas primeiras descobertas, em que eu comentava as fontes que tinha trabalhado, foram, pra mim, inesquecíveis.
Eu me sentava na ponta da cadeira, falando demais pra esconder o embaraço, enquanto ele observava sorrindo e falando pontualmente.
Descobri todo um universo de jornais, revistas, boletins, micro filmes, História que ia se fazendo na minha vista.
Não desisti da História.
Fiz todos os cursos que pude com Professor, e voltei a fazê-lo 15 anos depois, como ouvinte, só pra matar a saudades.
Pra minha - grata - surpresa, ele se lembrava de mim. Mais contida do que aos vinte anos, ainda sorri internamente quando em uma aula ele disse." eu estava pensando no que a Vivien falou na outra aula"
Ele estava pensando no que eu tinha falado. Pensei "yesssssssssss...!!!"e tive vontade de dançar como o caranguejo da propaganda de cerveja,mas nao movi um músculo, claro. Não ter vinte anos tem suas obrigações....
No final da aula, uma menina bonitinha sorriu pra mim: "ele é o máximo, nao é?"
Sorri de volta. É ..ele é o máximo



****texto publicado originalmente em 2006.

05 outubro 2011

O gato que dorme comigo






Eu sei muito bem o que vocês pensaram ao ler esse título à lá imprensa marrom. Eu sei, vocês queriam saber cá das minhas intimidades, heim? Confessem, confessem.
Mas o gato que dorme comigo é um felino mesmo. Um gatão preto e manhoso chamado de Malcom X, por quem minha cachorrinha, a Renildes, morre de amores desde sempre.
Ele me ama. Me espera chegar, vai ao meu encontro e rola no chão, com miadinhos. Dorme da minha cama e nos finais de semana, onde durmo até mais tarde, ele permanece ali, só levantando quando eu decido fazer isso.
Malcom sofreu um sério acidente esse ano, foi atropelado, quebrou a perna, a mandíbula, estava uma poça de sangue quando eu o peguei no colo e levei, chorando como uma louca, até uma clínica.
Operado, tomou soro e ia capenguinha para o canto, querendo um carinho, quando eu ia visitá-lo. Quando o trouxe para casa, ficou com o colar elisabetano - aquele que parece um abajour - sem poder mastigar ou andar, comendo papinha.
Ficou tão triste, sujinho, porque não podia fazer sua rotina de limpeza diária. Ronronou todo reconfortado, quando eu o limpei, se recuperou bem e, se gostava de mim antes, agora me ama.
Fica o tempo que é possível no colo, e eu adoro, como sempre adorei os muitos gatos que tive na vida: Moneda quando ainda morava no Rio, Gueixa quando me mudei pra Campinas, Intrusa e Sookie, respectivamente avó e mãe do Malcom X. Adorei todos.
Talvez porque, como me disse um de meus escritores favoritos, Eustáquio Gomes, " se tenho gato no nome, hei de ter algo de gato na alma".
Miau.


***post publicado originalmente em setembro de 2008.

A Arte e o discurso sobre a arte












Não sou historiadora da arte. Meu discurso portanto não é de especialista. Mas como me permite Marilena Chauí, opino à revelia do "discurso competente".
Assim, dou meus pitacos como alguém que vai, vê, gosta ou não de algo. E gosta ou não da Bienal.
A última foi um fiasco, já comentei aqui, se não fosse a exposiçãodo Krajberg na Oca, teria sido tempo perdido. Bienal do vazio é o meu...bom, vocês conhecem a expressão.
Nesse feriado fui na Bienal, foi meio complicado pois estou com umas dores chatérrimas no pé e andei aquilo tudo mancando como uma velhinha, mas fui.
Gostei de algumas obras, desgostei de algumas outras. Até ai, beleza. Arte é pra isso mesmo, vamos correr da unanimidade, certo?
Mas algo me incomoda: o fato do discurso sobre a Arte ser maior do que a própria obra. Como a artista que percorre partes do mundo descobrindo intervenções humanas na natureza e a natureza reagindo a isso - uma barragem feita por soldados que é coberta por mato - e diante disso se destilam teses.
Sempre houve essa questão de se perceber a profundidade de um objeto ressignificado pelo olhar do artista ( Duchamp já provava isso) e eu nunca faria um texto falando sobre a importância da técnica, pois eu realmente acredito que ela esteja a serviço da criação e não o contrário.
Ainda assim, quando o discurso sobre a obra não funciona como uma forma de redimensionar a compreensão, mas de tornar possível alguma forma de comspreensão, na minha interpretação, essa obra é falha.
Se ela não me desperta nada, nem mesmo irritação, mas apenas tédio diante de linguagens que se repetem à exaustão - como a utilização de áudiovisual em salas que ficam quase todo o tempo às moscas - eu acho que existe algo muito equivocado por aí.



***post publicado originalmente em novembro de 2010.