17 setembro 2007

O texto da Mel









Lendo o blog da Mel, me deparei com esse texto. Pedi autorização dela para publicá-lo, porque acho que o racismo deve ser combatido sistematicamente, diariamente, sem tréguas. E nada melhor do que ouvir quem levou na própria carne pra ter mais certeza ainda.Acompanhem a Mel:




"Obtive meu primeiro emprego com carteira assinada em 1996, aos 15 anos. Fui contratada para ser atendente de uma das lojas Arby´s, um fast food de sanduíches de rosbife. Comecei em novembro. Em dezembro tive meu primeiro salário (recebia R$ 1,96 por hora) e fui ao shopping Ibirapuera (o mais próximo, dado que eu trabalhava na Alameda dos Maracatins) comprar uma calça jeans de cintura baixa. Há tempos queria ter uma. Todas as meninas usavam modelos assim. Geralmente eu herdava roupas que não cabiam mais em minhas irmãs, logo não podia me dar ao luxo de ter preferências. Mas naquele dia de dezembro de 1996 seria diferente: com meu primeiro salário eu compraria uma calça exatamente do jeito que eu queria.

O tempo apaga muitas coisas da memória como, por exemplo, o nome da loja que escolhi para fazer minha tão almejada compra. Entretanto não apaga outras como a sensação de ser sumariamente ignorada dentro desta mesma loja. As vendedoras, todas brancas como as clientes que estavam por ali, escolhendo e provando roupas, não se deram ao trabalho de perguntar nada, de oferecer ajuda... enfim: eu era absolutamente invisível naquele lugar. Inegável mal-estar. Vontade de sair dali o quanto antes. Sorte que a loja era do tipo que deixava a mercadoria à mão. Sozinha procurei a calça e encontrei um provador livre. Sozinha me dirigi ao caixa para efetuar o pagamento. A moça do caixa me sorriu e perguntou onde estava a minha comanda. Eu disse que não tinha uma. Ela então perguntou quem me atendera. Ninguém, respondi. Por um momento ela ficou me olhando. Como se houvesse entendido coisa que eu aprendera a entender desde muito cedo. Paguei a calça, peguei minha sacola e fui embora.

pCreio que todo adulto negro lembre de pelo menos uma dezena de episódios de racismo pelos quais tenha passado. Digo isso chutando baixo. Eu nunca parei para contabilizar (até porque tenho mais o que fazer da minha vida), mas enquanto escrevo este pequeno texto vão me aflorando na memória muitos, muitos mesmo. Desde o colega da pré-escola, Eduardo, 5 anos, que numa brincadeira infeliz de “beijo, abraço ou aperto de mão” cuspiu no chão depois de beijar minha bochecha até o constrangimento de, numa agência de empregos da Barão de Itapetininga, ser “avisada” pela entrevistadora que a vaga pela qual eu me interessara era só para quem estivesse “fazendo faculdade”. A fulana tinha meu currículo nas mãos, mas não se deu ao trabalho de olhar o documento: para ela bastava olhar o tom da minha pele e, a partir dele, julgar meu grau de instrução.

Algumas pessoas que se posicionam contra a concessão de cotas para negros nas universidades alegam como motivo principal a dificuldade de apontar, num país tão miscigenado, quem seria de fato negro. Haveria uma dificuldade em apontar o fenótipo. Engraçado que quem nasceu negro neste país sabe exatamente o fenótipo que o faz ser preterido quando se candidata a uma vaga de recepcionista, por exemplo. Não quero com esta declaração me posicionar a favor das cotas. Este é, aliás, um defeito da minha formação. O professor Kabengele diz que os educadores têm a obrigação de ter uma opinião formada sobre este assunto, o das cotas. Eu confesso que não tenho uma, ainda. Toda vez que começo a pender para uma posição, surge um outro questionamento que me faz rever tudo... Em todo caso eu não comecei a blogar para escrever sobre as cotas. Isso aqui é sobre outra coisa.

O racismo dói e ao mesmo tempo revolta. Quando criança, mais nova e inexperiente, doía mais que revoltava. Hoje revolta mais que dói.

Setembro de 2007. Vou almoçar com uma colega da seção. Não sei por que cargas d´água falamos numa outra pessoa que também trabalha na FEA. A colega, rindo, me pergunta se eu estava falando da “dominó”. Fico intrigada com o apelido, não entendo. Ela me explica que M., um outro funcionário da FEA, dera esta apelido àquela pessoa a quem nos referíamos por se tratar de “uma negra com pinta de branco”.

Preciso dizer que perdi a fome?

Atitudes deste tipo me incomodam tremendamente muito mais que demonstrações de racismo declaradas. Quando trabalhei na Atento tive uma amiga, de quem gostava muito, que desde a primeira visita a sua casa me avisara “Minha vó não gosta de negros”. Eu ia sempre visita-la preparada para o tratamento hostil. A criatura de seus 80 e poucos anos permanecia na cozinha enquanto eu estivesse na sala. Eu, da minha parte, fazia de tudo para ir embora logo. Assim nos (des)entendíamos e a vida prosseguia. O comportamento do M. me incomoda por ser velado. Duvido que, se colocado frente a parede e questionado se seria de fato um sujeito racista, M. responderia “sim, eu sou”. Imagino que se desvencilharia da questão com uma alegação do tipo “foi só uma brincadeira” ou coisa que o valha.

Não é preciso ter cursado Letras e nem ser um às em análise do discurso para perceber o racismo presente no apelido e na expressão “preto com pinta de branco”. A colega de trabalho da FEA em questão, a apelidada de “dominó”, veste-se muito bem, com muito bom gosto por sinal. Para o racista M. este esmero significa um distanciamento da negritude e conseqüente aproximação ao “mundo dos brancos”, mundo dos “bem-vestidos”. Alguém duvida que isto seja racismo?

Lembro-me de, mesmo criança e incapaz de compreender muitas coisas, questionar o porquê de certas atitudes alheias que doíam em mim. Como o exemplo do pequeno Eduardo que, aos 5 anos, numa brincadeira de “beijo, abraço e aperto de mão”, cuspiu no chão na frente de todos depois de beijar minha bochecha. Demorei alguns anos para entender que a culpa não é do Eduardo, mas sim de seus pais e/ou demais adultos que de alguma maneira vão incutindo o gérmen do racismo em seus filhos, sobrinhos, netos, afilhados, etc. A criança é resultado de seu meio. Assim, boçais racistas como M. vão, infelizmente, plantando suas sementes podres e gerando pequenos Ms Juniores...

Ps: Como não sei quem lê este blog, me contive e optei por não citar abertamente o nome do racista funcionário da FEA em questão. Não se trata de medo, nem nada do tipo. Ocorre que o episódio além de não ter acontecido diretamente comigo me foi narrado em 3º pessoa. Não posso sair por aí fazendo acusações porque teria que prova-las. Duvido que o racista em questão assuma o que disse. De pessoas assim só é de se esperar a covardia. "

32 comentários:

  1. vivien. os preconceitos estão desgraçadamente grudados em cada ser humano - pode ser relativo a cor, a classe social, a cultura, a comportamento. eu cresci sendo apontada por muitos, pobres como eu, como a sapateira. na faculdade (comunicação, hem!) tinha quem dissessse: "vila do IAPI? nem imagino onde fica". Já cansei de sair das forum e ellus da vida porque nenhum dos atendentes me olhava porque eu não estava grifada.
    então, mesmo reconhecendo a dor justificada da mel, não me espanto. nem me incomodo mais. quando me sinto desprezada ou intimidada, dou o troco. as pessoas têm medo de reagir para não pagar mico, ou por medo. eu aprendi que silenciar é inútil, faz o jogo de quem tem o poder. então, boca no trombone.
    bj

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  2. Maris, acho que esse é ponto: botar a boca no trombone!
    beijos.

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  3. Tati, pois é...revoltante mesmo.

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  4. nossa, que relato maravilhoso. Dá pra sentir na pele, ainda que isso seja muita pretensão minha. Mas o preconceito é dolorido em todas as suas formas.

    Força pra todos nós, com a boca no trombone (e a mão numa AR-15 - tá, isso foi uma brincadeira feia. Mas dá raiva)

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  5. (Leandro, bom ver vc falando por aqui....eu tinha visto vc no contador e me vi linkada por lá, coisa que me deixa super feliz.
    Agora me deu o certificado, que eu curti pacas...valeu.)
    Quando eu pedi para a Mel para publicar aqui, foi esse meu intuito..acho que o texto faz a gente se mover pra dentro da situação de preconceito, mexe com o leitor.
    beijos.

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  6. Esse tipo de situação vivida pela Mel é revoltante e inaceitável, racismo e preconceito são dos piores pensamentos que um ser-humano pode ter.

    O preconceito está difuso e difundido pelo Brasil, direcionado a diferentes segmentos sociais, já trabalhei com um grupo indígena e via todo o preconceito que eles sofriam, também tenho um grande amigo e colega de curso que tem uma perna amputada e usa uma prótese, e ele me fala de situações inacreditáveis sobre isso. Coisa de gente com a alma pequena.

    Quanto à pergunta lá, podes usar o formato do post Retrato Falado, tranquilo.

    Beijos.

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  7. Tiago, trabalhando com crianças e adolescentes eu vi tanto situações extremamente solidárias, como aviltantes....Choca mesmo.
    Eu vou publicar ainda essa semana, já estava rascunhando.;0)

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  8. Deprimente e revoltante. Racismo, sexismo, homofobia estão por aí, por mais que, como disse a autora, se pergunte diretamente "você é racista/machista/homofóbico?" É velado e real...

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  9. Vivien, o preconceito é presente no nosso cotidiano, mas velado pois o brasileiro tem a mania de ser gentil e fugir de hostilidades diretas. Prefere a falsidade, o sorriso amarelo a dizer francamente que não gosta de aguém.
    Eu tenho uma irmã negra. Fomos criadas juntas, a mãe dela trabalhava como cozinheira da casa da minha avó. A conheço desde que nasci e ela sempre foi como minha irmã mais velha. Lembro que demorei muito tempo para notar que ela era diferente de mim, no sentido que eu não via a diferença que as pessoas viam. Quando comecei a ter consciência das coisas comecei a notar que em certas ocasiões ela recebia um tratamento diferente do meu, e quando notei que era pela cor da pela levei um susto. Acho que esta consciência veio antes de eu virar adolescente. E ela é hoje uma grande mulher que venceu na vida e que nunca se deixou abater por reações de gente pobre de espírito.
    Mas é bom lembrar que o preconceito existe não só na questão racial. Todos que "fogem" do padrão estabelecido como "normal" sofrem algum tipo de preconceito e quase sempre velado.
    E parabéns para a Mel por este post.

    Beijos

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  10. Anônimo5:00 AM

    (fofa! Peraí, vc sabe que eu sou um bebê nesse mundo blogueiro, né? Como faz pra ter um contador chiiiique desses? Eu quero!)


    Você cumpriu a sua intenção. O texto é muito bom e, claro, eu fui lá no blog da Mel e adorei!

    Beijão

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  11. Anônimo5:39 AM

    Vivien acho que já mencionei aqui que também sou professora de historia. Aos sábados dou aulas em um pré vestibular comunitario. Meus alunos, em sua maioria estão inscritos no vestibular para concorrer as vagas das cotas.
    Não tem um sábado que eu não saia daquela aula sem que esses meninos me deixem refletindo muito. São muitas histórias, muitos pontos de vista. Muitos se revoltam com os questionarios do ENEM, me pergutam o que eu acho. Não concordam com as classificações. Sofrem muito.
    Meu universo tão restrito de menina classe média mudou com esses meninos. Como a Mel eu também não tenho opinião formada sobre as cotas, mas fico muito triste ao ler um texto como esse.

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  12. Eu acho que a gente precisa tanto falar mais abertamente dessas questões. A discussão no Brasil tão num nível tão reles, tão Gilberto Freyre ainda...

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  13. Triste! Eu me assumi gay aos 17 anos e também sofro minha dose periódica de discriminação e preconceito. Assim como a Mel, sei bem como é ser apontado como o diferente, o anormal. As pessoas te julgam antes mesmo de te conhecer melhor, de saber do seu caráter. Julgam pela cor da pele, preferência sexual, classe social, idade, gênero. Infelizmente, nosso mundo vive de aparências. Sua idoneidade como ser humano pouco importa. Muito triste!

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  14. Deus do céu... que texto lúcido! Que triste realidade...

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  15. Vivien, todos se dizem contrários ao racismo mas não ser racista mesmo, não só com os negros, é outros quinhentos. Somente pessoas de indole inquestionável tem tais atributos, a maioria não, lamentavelmente...

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  16. Eu já não tinha comentado aqui?

    Enfim...no Brasil, com essa falsa noção de cordialidade, de que não há racismo ostensivo, acho muito difícil que a discussão avance.

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  17. A Mel escreve muito bem e nos passou todo o dilema dela com emoção.Por incrível que pareça, ainda acontece isso nos dias de hoje.

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  18. é preciso falar mais e mais sobre esse tema...incansavelmente.
    bjs darling

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  19. Babs, concordo com vc. E a maneira mais "sutil" de transmissão de preconceitos são as "inocentes" piadinhas.beijos.

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  20. Marion, vc colocou uma questão interessante:os "fora do padrão" são vitimizados diariamente.beijos.

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  21. Leandro, vá até o final da página no meu blog, tenho dois contadores, clique neles e se cadastre. Não aparece todo mundo, mas ele "dedura" alguns. Foi assim que conheci seu blog...ehehhe
    beijos.

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  22. Cecy, eu acho a questão das cotas muito controversa. Preciso ler mais sobre isso, mas a princípio, creio que tenta "mascarar" uma realidade.Meus alunos negros e mulatos são contrários a ela. Meu filho, que é mulato, já escreveu contra em seu blog. Mas é uma questão pra se discutir com profundidade, certo? beijos.

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  23. Andrea, pois é...ainda tem gente que acredita nessa tal "democracia racial"..pode?? beijos.

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  24. Claudia, achei o texto bem impactante tb. beijos.

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  25. Ronald, como vc apontou: vários racismos e vários preconceitos. E a gente tem que lugar contra todo dia.beijos.

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  26. Andrea, perfeito! sem a idéia aberta do inimigo, fica dificil se proteger. Aliás, quem se protege, quem reage ...e até mal visto algumas vezes. Coidelôco.beijos.

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  27. Fê, eu e meu filho temos a sorte de conviver diariamente com amigos gays e penso que a homofobia tende a ser derrotada nos proximos anos: em grande parte graças a midia. Esse é uum bom tema de post...heim? beijos.

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  28. Rosamaria, foi por isso que pedi pra publicar: acho que ela traduziu de forma ímpar.beijos.

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  29. Cynthia!!! vc some, mulher, não summmaaaa....;0)
    Quanto ao seu comentário, écomo penso, deve ser discutido e combatido diariamente.beijos.

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  30. Vivinha,
    Vou utilizar o texto em sala. Lembra daquela pesquisa da folha que continha uma paradoxo estatistico: 90% dos entrevistados diziam conhecer uma pessoa racista e os mesmos 90% afirmavam NAO ser racista?

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  31. Frou, porque racista é o "brasileiro"...quem?? o "brasileiro",;0)

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