14 dezembro 2008

Tempo Rei


A primeira coisa que me chamou a atenção no livro, foi a o título. Sei que pode parecer óbvio ululante, mas quando olhei a capa vermelha e li O Filho Eterno, pensei o que qualquer um que tenha tido o mínimo contato alguém com Síndrome de Down pensaria: o título é genial, porque para os portadores da síndrome o tempo é uma abstração incompreensível, tudo é praticamente um presente eterno, para eles a noção de tempo praticamente não existe.E eu sei disso, porque como tive alunos Downs e sou professora de História, e me vi em uma situação angustiante: como ensinar História para alguém que não compreende o que é tempo?
Cristovão Tezza, o autor, o intelectual para quem a possibilidade de um desenvolvimento que fosse aquém do convencional era uma tormenta, tinha tido a inverossímel profissão de relojoeiro.
O ex-relojoeiro tinha então que lidar com o não-tempo do filho, o tempo eterno do filho.
Tezza construiu um romance com rara franqueza, com rude franqueza, despido de qualquer pudor, onde tem seus sentimentos mais recôndidos revelados. Sem pena de si mesmo, ironiza suas atitudes, ironiza suas desculpas e assume, de forma dolorosa e aberta, a frustração e o medo que sentiu ao ser pai de Felipe, um menino com síndrome de down.
E o texto não é um daqueles que mostram o pai rejeitando e amando pouco tempo depois, todo felizinho. Não. Mostra o pai desejando a morte daquele "filho errado" , como ele classifica, mostra o pai tentando toda e qualquer estratégia para normatizar o pequeno e transformá-lo no tal filho certo.
Concomitantemente a narrativa em que a aventura de ser pai é descrita, Tezza se alonga em uma deliciosa digressão onde sua temporada como trabalhador e como estudante na Europa, onde seu olhar, longe de ser saudoso, mas uma vez tem o tom sagaz e cruel de uma ironia sem perdão. Assim, o livro é narrado em dois tempos: o tempo de Felipe e o tempo antes de Felipe, onde tudo converge para que conheçamos de forma mais intensa o pai.
Assumir Felipe não era apenas assumir um filho , e um filho down, mas era assumir uma vida de adulto, perceber que embora ele negasse, tempo que havia passado.

"Um gancho atávido ainda o prende à nostalgia de uma comunidade de teatro, que frequenta uma vez por ano, numa prolongada dependência ao guru da infância, uma ginástica interminável e insolúvel para ajustar o relógio de hoje à fastasmagoria de um tempo acabado" (p.12)

Assim, o tempo é um personagem à parte: o tempo que o antigo Tezza tentava parar, o tempo que Felipe não concebe e o tempo real, reorganizando as relações e desenvolvendo o amor que finalmente surge e toma conta do pai, que resolve crescer, trabalhar, ser pai efetivamente.
A história aparece pautada na literatura, tudo parece ter significado através de uma interface com alguma referência literária. Assim a vida é compreendida melhor através dos livros, como se eles dessem sentido à realidade.
O pai compreende o mundo através dos livros e perceber que isso seria impossível para seu filho praticamente o destroça.
Descobrir o amor desse filho, descobrir o amor por esse filho, tudo isso acontece de forma paulatina, dolorosa e profunda.
Acho que poucas vezes vi algo tão genuinamente franco, tão corajosamente franco.
Tezza foi laureado com vários prêmios ( Bravo!, APCA, Jabuti , Portugal Telecom) e tudo indica que ainda irá receber mais alguns, o que sinceramente, eu espero.

17 comentários:

  1. Anônimo6:00 PM

    Depois dessa resenha, alguém não fica com vontade de ler? :o) beijo!

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  2. Anna querida, bom saber que vc gostou. Dividir os livros que leio, ou pelo menos tentar isso, é um dos prazeres dessa Casa.;0)
    Saudades de vc, beijos.

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  3. Aliás, você é uma ótima resenhista, diga-se de passagem ;)

    Vou ler!

    Beijocas

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  4. Marcinha, thanks!
    Leia porque tenho certeza de que vc vai gostar.
    Beijos.;0)

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  5. Anônimo4:09 AM

    Fiquei com vontede de ler o livro e de voltar mais vezes no seu blog.
    Fre

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  6. Vivien,
    eu já postei sobre o Cristóvão Tezza lá no Rodadas Literárias. Pena que aquele bloguinho não dá ibope. Seria um ótimo lugar para compartilhar literatira, Mas, xá prá lá. Não vim falar de mim.
    Esse livro do Tezza vai ganhar muito premios ainda, todos merecidos. Para mim ele é o grande autor brasileiro no momento, não vejo ninguém que se aproxime. Gosto muito de Raduan Nassar, gosto de Milton Hatoum, mas Cristovão Tezza chegou muito profundamente na alma das pessoas que estiverem dispostas a um mergulho em sí próprio, desvendar seus mistérios mais escondidos, aquilo que não ousamos falar em voz alta, mas que desejamos, o tomara que morra que fica preso na garganta com medo que alguém escute e nos esculhambe. É, uma auto-terapia. Depois de ler, vc não precisa mais de pscanálise, se estiver fazendo, pode dispensar o analista.
    Beijo, menina

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  7. Fazia tempo que não tinha vontade assim de ler um livro como estou com vontade de ler este do Tezza. Vi algumas entrevistas com ele na TV Cultura. Além destes prêmios que você citou, acho que ele ganhou também a Copa de Literatura Brasileira. Dá uma checada depois que tem boas resenhas por lá também.

    A gente vai se falando, mas já desejo boas festas, Vivien!

    Beijo e sempre muito feliz com tuas visitas no blog.

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  8. ***Freackly, boas escolhas, boas escolhas...;0)
    beijos.

    ***Valter, acho que é isso mesmo, eu fiquei pasma com a rude franqueza sobre si mesmo que encontrei na (boa) narrativa de Tezza.;0)
    beijos.

    ***Shira, eu descobri o livro na Copa mesmo, li duas resenhas que adorei e não deu outra: adorei o livro.;0)
    beijos.

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  9. Ilustrastes muito bem os escritos com essa imagem de Chronos, por si só apavorante.
    Gostei muito e fiquei com vontade ler o livro também.
    =)

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  10. Pamela, obrigada pela visita. Adoro essa imagem de Cronos, acho que Goya foi muito feliz nesse trabalho. O Tempo sempre me dá meod.;0)
    Beijos e volte sempre.

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  11. Anônimo9:40 AM

    Linda resenha Vivi.
    Vê que o cara era (pelo que pude ler aqui e nos jornais), antes do filho nascer, do tipo-ideal libertário, paz e amor, contra-cultura. Todo esse horizonte construído de aparente incondicional abertura para as identidades - nisso a própria tb - e mesmo assim a rejeição, o choque com o que nem se podia supor. Do outro e de si. E que não podia ser, inacreditável.
    Me chama a atenção como a assertividade da razão, por mais nobre idéia que expresse, não vem sem as contradições da experiência, dos sentimentos, os + complexos . É duro (falo daqui do meu camarote tipo-ideal), mas me parece que assim a real experiência libertária. Cê não acha?
    Vou comprar o livro hoje!
    Bejocas querida.

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  12. Sibila, acho que a auto-análise que ele faz demonstra alguém que vivia dentro dos paradigmas da contra-cultura pautado, muitas vezes, pelo "teatro" da coisa. Ele descreve vários momentos de sua vida compreendidos como charge, tirinha, filme, vistos assim, outros momentos são comparados com livros, são paralelos. Então fica tudo embaralhado dentro da ficção, do charme da ficção. E eu acho, efetivamente, que muito discurso libertário fica restrido ao...discurso.;0)
    Compre sim, depois me conte tudo.;0)
    beijocas.

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  13. Vivien,
    Também amei "O Filho Eterno", há muito não lia livro tão bom.
    Convergência: há poucos dias, para uma palestra sobre antropofagia, trabalhei num power point em que este quadro de Cronos, aquele que devorou os próprios filhos, também aparece.

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  14. Vivinha,
    O autor precisou sangrar, para aceitar e amar o filho. Foi uma escalada para o amor.
    Tenho certeza que o livro é muito bom, resenhado e indicado por vc.
    bjs
    mamãe

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  15. ***Janaina, adoro essas coisas de convergência, acho que algumas vezes parte da blogosfera vibra na mesma sintonia.
    Adoro esse quadro, adoro Goya.
    beijos.;0)

    ***Mãe, obrigada. ;0)Acho que ele teve que ter uma jornada realmente dura e teve talento para desdobrar isso em texto.;0)
    beijos.

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  16. Oi, Vivien!!!

    Ainda não terminei a leitura, sou assim: quando gosto de um texto, páro, tenho receio de perdê-lo...
    Qualquer dia retomo...

    Como estou estudando um pouco sobre pessoas com síndrome de Down e classes inclusivas, me inscrevi numa lista de discussão sobre SD, para aprender nos debates...

    Ali, encontro pais e mães de crianças com SD e que questionam o livro de Tezza e o filme de Mocarzel ("Do luto à luta"), por causa dos relatos dos conflitos que vivenciaram quando se descobrem pais de bebês com SD... relatos que são feitos na presença dos filhos (no filme, por exemplo).

    Os pais da lista acham uma crueldade com os filhos...

    Achei muito interessante tua leitura em relação ao "eterno" do título. Eu não sabia dessa limitação das pessoas com SD de compreender o tempo...

    Os pais da lista a que referi entendem o "eterno" como uma impossibilidade de construção de autonomia das crianças com SD e, por isso, não concordam e acham que o livro não deve ser lido!

    Embora, há anos em sala de aula, nunca trabalhei com alunos com SD... infelizmente... parece que eles não "chegam" ao ensino médio!!!

    Desculpa o comentário "salada"!!!

    Abraços!!!

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  17. Oi, Vivien!!

    retorno, depois de alguns dias cheios, finalizando tarefas...

    Comentaste lá no Ufa!:
    "Alguns vão se desenvolver maravilhosamente bem, outros terão mais percalços." Assim é com todos nós, né?!
    "É complicado: se vc não percebe uma questão como problema, vc não caminha para soluciona-lo." Quando leio alguns comentários na lista de discussão Síndrome de Down, os pais e as mães me passam a ideia de que as crianças com SD não apresentam alguns limites...
    "De qq forma, acredito que qq tipo de criança com necessidade especial deva ser incluído...mas incluído verdadeiramente, não pró forma como fazem algumas escolas!" Como trabalhei numa escola de periferia, lidava muito com a exclusão econômica - jovens sem acesso à saúde, ao lazer, à moradia digna, ao trabalho... exclusão bastante cruel... tanto quanto a exclusão das pessoas com deficiência!!! Talvez até maior, pois mais invisível!!!

    Sonho com o tempo em que a gente não precise mais falar em inlcusão, pois a escola será para todos e todas!!! O mundo será para todos e todas!!!

    Abraços!!!

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