17 dezembro 2009

Ode para Música Perdida












Eu li Música Perdida nessa semana. E eu fiquei me perguntando como eu ainda não tinha lido nada de Luis Antonio de Assis Brasil. Lê-lo foi fantástico e quero ler tudo que ele escreveu.
O livro me envolveu e comoveu intensamente. Não estou falando em termos sutis ou com um levantar de sombrancelhas intelectualizado. Me comovou às lágrimas, aos soluços.
O livro narra a vida do maestro Joaquim José Mendanha: na cena inicial,um velho maestro morador de Porto Alegre. Cena esta que, após a leitura do livro, se torna absolutamente ressignificada e emocionante.
Entrecortado por flash backs, o livro reconta o início da relação do maestro com a música, começando com a constatação do seu "ouvido absoluto", feita por seu pai, um singelo músico de uma pequena cidade. Nesse momento, ele é Quincazé e conforme os flash backs vão avançando no tempo e na trajetória do músico, ele é chamado de Joaquim José, militar, maestro.
Nessa trajetória, iniciada com o pai, o maestro encontra e se influencia profundamente por outros dois homens: um rico músico de outra cidade e um padre no Rio de Janeiro.
A diferença na relação entre eles é grande, a provável paixão do professor pelo então jovem músico e seu desejo de que seu protegido avance artisticamente, a visão do padre, temeroso do brilhantismo, temeroso da soberba. A morte dos três instaura ao maestro o peso da cobrança, do devir, dos desejos e espectativas de outros que pesavam em seus ombros, seus três fantasmas, como ele os chamava.
Um dos personagens mais comoventes é Pilar, a esposa do maestro, que assim como a fantástica Mulher do Médico no Ensaio Sobre a Cegueira de Saramago, é o sustentáculo do marido, expresso de forma berrante no próprio nome. A simbiose perfeita do amor dos dois chega a ser dolorosa ao leitor.
No decorrer desse caminho, o maestro compõem uma cantata que julga ser perfeita, nobre - por isso a esconde do padre, evitando críticas a sua suposta soberba - mas comete desatino de mandá-la ao compositor europeu Rossini, para uma avaliação. Assim manda a única partitura, sem cópia. (Sem cópias porque quando jovens, não imaginamos que vamos esquecer, ou não conseguir, ou não brilhar. Tudo é fácil, tudo são promessas ao nosso olhar ainda jovem. E foi assim com o maestro.)
Ele não a recebe por anos, por décadas. E ele passa a vida compondo hinos que considera menores, medíocres. Ele passa a vida emaranhado em algo que ele mesmo não respeita.
O maestro passa a vida em busca da música que havia perdido, em uma metáfora belíssima para o sentido da vida, para a busca initerrupta que acomete a tantos, talvez a você que esteja me lendo nesse momento. A busca que marca todo o livro, ou seja, toda a vida de Mendanha.
Alguns momentos do livro me lembraram Ensaio de Orquestra, de Fellini. Vi há muitos anos, mas uma cena onde cada músico fala sobre as idiossincrasias do seu instrumento, sua personalidade, essa relação específica, esse olhar de músico voltou a minha memória muitas vezes, norteando meu olhar sobre a
narrativa. Me lembrou Salieri observando uma partitura de Mozart em Amadeus, descrevendo-a com os olhos e ouvidos de músico, ensinando, dando a mão ao leitor para que o acompanhasse nessa interpretação tão sutil. Essa cena inesquecível eu vi há vinte anos e me voltou a memória muitas vezes ao ler esse romance.
Assim como o momento em que Mozart dita a música, captada por Salieri com fúria, com admiração, com inveja, cena onde a música aparece do ponto de vista privilegiado dos músicos. Ah, como desejei ouvir dessa forma, criar dessa forma. A velhice do maestro me comoveu, me assustou, a velhice aflora de forma surpreendente para ele e para o leitor. Não estamos esperando a velhice do Maestro, não estamos esperando a nossa própria velhice. A fugacidade e por vezes até a inutilidade da vida começam a doer na leitura. Viver para quê? Onde estava a cantata?
Onde estava, enfim, o sentido da vida?
A Cantataé descoberta, enviada ao maestro, copiada para cada instrumento pela sempre presente e estrondosamente forte, Pilar.
Não é à toa que Pilar é a copista, com sua letra magnífica, mostra o específico(a parte de cada músico) para que se costure o total: a orquestra.
E é nessa noite, na noite do encontro com a música, na noite da definição do Finale, que Medanha morre. Sua música perdida e achada, sua música perfeita é ensaiada, com exceção do Finale. Os músicos não ensaiam o Finale.
Mais uma belíssima metáfora nos acomete, porque, enfim, como ensaiar o final? como ensaiar a morte?
Sem ensaio, tocam com perfeição, lêem o que Mendanha havia escrito. Um pequeno trecho onde ele se apresenta diante de Deus com sua cantata perdida.
O finale do maestro também é perfeito, em seu útimo momento, ouve com perfeição a primeira nota que identificou com seu ouvido absoluto: o "sol".
Após a Música, o enterro, só resta o choro de Pilar e o choro dessa blogueira.
E para o maestro-escritor,só tenho uma única palavra:
BRAVO.

*********** post originalmente publicado em dezembro de 2007.
Esse texto está linkado nas críticas dos livros no site do prof.dr.Luis Antônio de Assis Brasil.


@@@post originalmente publicado em setembro de 2008.

22 comentários:

  1. eu fiz oficina literária de 1 ano com o assis brasil, ele é muito gente fina !

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  2. Vivien, adorei a resenha. Deu vontade de ler o livro. Às vezes a gente fala em resenha e a pessoa diz: pô, tenho jeito para isso, não. Mas, resenha é isso. Fazer com que a pessoa que lê a resenha, tenha vontade de ler o livro. Voce conseguiu.
    Beijo, menina

    ps: dia 20/12(quinta-feira próxima) estaremos em Sampa num encontro de blogueiros. Que acha?

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  3. que bom que gostou!
    :>)

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  4. Lady A., to invejando vc demais!
    beijos.;0)

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  5. Valter,que delícia de elogio,obrigada.Mas nem precisa ser boa resenha,o livro ´uma obra prima.beijos.;0)

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  6. Bia,a-d-o-r-e-i.
    Vou resenhar o outro,gostei tb, mas não com a intensidade desse.
    beijos.;0)

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  7. Vivien,
    Uma das coisas mais bacanas da leitura é poder, com alguma freqüência, passar pelo sentimento que o seu texto revela. Ler, muitas vezes, apaixona. Não li o livro que você leu mas fiquei com vontade.
    A cena que você descreveu do Salieri, é uma das mais impressionantes que o cinema já exibiu.
    Grande beijo

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  8. Lord, me sinto honrada em saber que meus amigos desejam ler o livro por minha resenha..
    Leia e me diga o que achou.
    Quanto a cena,eu a vi no cinema e jamais a esqueci.
    beijos.;0)

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  9. Vivien. Como boa gaúcha, vou te dizer uma coisa: quem deveria ter ido para a ABL é o Assis Brasil e não o Scliar que lá está principalmente por lobby, já que não vejo grandes talentos literários no que ele escreve, tampouco no Verissimo. O Assis Brasil é sincero mas cuidadoso e tem uma boa oficina literária nos pagos.
    bj
    ps: se você continuar jogando confete nos meus textos, vou virar aqueles chocolates da neugebauer. aliás, do jeito que estou redondinha, já virei

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  10. Maris, nesse ponto vou discorddar de você: adooooro O Scliar ( aliás, como ganhei do Arnaldo e da Clélia um livro dele,vou resenha-lo por aqui tb, adoro mesmo). Quanto aos Verísssimos,pai e filho,foram cruciais na minha formação literária,houve uma época em que eu lia ambos com fervor, e ainda adoro.
    E quanto aos seus textos; com certeza seu blog é um dos melhores textos da blogosfera. Eu sempre leio e penso "c****, como ela escreve bem!!!!".
    Beijos.;0)

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  11. Vivinha,
    BRAVO para vc tb. O interesse em ler o livro, depois da resenha,foi coletivo.
    Bjs
    Mamãe

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  12. Mãe,virei fã do autor.;0) beijos.

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  13. Vivien, andei meio sumido né? Vestibular minha cara, depois de velho é terrível. o Walter já disse tudo de sua resenha mas mesmo assim me lembrou algo que pensei dias atrás, deixei de lado faz tempo as obras clássicas da opera, tenho que voltar ao prazer e dar aos meus ouvidos direito à melodias de qualidade.

    Ótima semana à você

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  14. Ronald,vc é de casa,venha sempre.;0)
    E conta essa históia de vestibular.
    beijos.

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  15. Choro bom, esse, Vivien!

    Do jeito que vc escreveu é impossível não se sentir envolvida!

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  16. Anônimo10:21 AM

    legal! fiquei com vontade de ler o livro... beijos
    tenha uma boa semana!

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  17. Mulher,
    que texto lindo, bem escrito sensível..musical...
    eu fiquei emocionada de ler o que vc escreveu. Imagine quando eu ler o livro!

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  18. Ana, impossível não se envolver.beijos.;0)

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  19. Sandrinha,leia sim!beijos.;0)

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  20. Tati,a leitura de um músico deve ser realmente especial....eu adoraria ver vc falando do livro!
    beijos.;0)

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  21. Que linda resenha.

    Um autor que emociona a esse ponto já ganhou o céu da literatura. Sua verve, tão solta, mostra um mergulho no fundo do fundo do texto. Obrigada por dividir a reflexão, combina exatamente com o momento em que me encontro, em que procuro saborear palavras e selecionar o que leio para encontrar refúgios em bons textos. Xô avalanche de informação.

    Agradeço também as visitas assíduas ao meu blog. Que você tenha um ótimo 2010, um natal bem tranquilo e feliz e que a gente continue brincando com palavras e as reunindo com inspiração vida afora :)

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  22. ***Ana Carmen, o autor foi uma grande descoberta para mim. Fico feliz em saber que vc gostou da resenha. Para minha alegria, ele tb gostou, e disse isso em emails amáveis como só os grandes intelectuais sabem ser.
    Visitar seu blog é um prazer, seus textos límpidos e inteligentes sempre me interessam.
    Beijos para vcs e para o Francisco.

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