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A primeira coisa que me chamou a atenção no livro, foi a o título. Sei que pode parecer óbvio ululante, mas quando olhei a capa vermelha e li
O Filho Eterno, pensei o que qualquer um que tenha tido o mínimo contato alguém com Síndrome de Down pensaria: o título é genial, porque para os portadores da síndrome o tempo é uma abstração incompreensível, tudo é praticamente um presente eterno,
para eles a noção de tempo praticamente não existe.E eu sei disso, porque como tive alunos Downs e sou professora de História, e me vi em uma situação angustiante: como ensinar História para alguém que não compreende o que é tempo?
Cristovão Tezza, o autor, o intelectual para quem a possibilidade de um desenvolvimento que fosse aquém do convencional era uma tormenta, tinha tido a inverossímel profissão de relojoeiro.
O ex-relojoeiro tinha então que lidar com o
não-tempo do filho, o tempo eterno do filho.
Tezza construiu um romance com rara franqueza, com rude franqueza, despido de qualquer pudor, onde tem seus sentimentos mais recôndidos revelados. Sem pena de si mesmo, ironiza suas atitudes, ironiza suas desculpas e assume, de forma dolorosa e aberta, a frustração e o medo que sentiu ao ser pai de Felipe, um menino com síndrome de down.
E o texto não é um daqueles que mostram o pai rejeitando e amando pouco tempo depois, todo felizinho. Não. Mostra o pai desejando a morte daquele "filho errado" , como ele classifica, mostra o pai tentando toda e qualquer estratégia para normatizar o pequeno e transformá-lo no tal
filho certo.
Concomitantemente a narrativa em que a aventura de ser pai é descrita, Tezza se alonga em uma deliciosa digressão onde sua temporada como trabalhador e como estudante na Europa, onde seu olhar, longe de ser saudoso, mas uma vez tem o tom sagaz e cruel de uma ironia sem perdão. Assim, o livro é narrado em dois tempos: o tempo de Felipe e o tempo antes de Felipe, onde tudo converge para que conheçamos de forma mais intensa o pai.
Assumir Felipe não era apenas assumir um filho , e um filho down, mas era assumir uma vida de adulto, perceber que embora ele negasse, tempo que havia passado.
"
Um gancho atávido ainda o prende à nostalgia de uma comunidade de teatro, que frequenta uma vez por ano, numa prolongada dependência ao guru da infância, uma ginástica interminável e insolúvel para ajustar o relógio de hoje à fastasmagoria de um tempo acabado" (p.12)
Assim, o tempo é um personagem à parte: o tempo que o antigo Tezza tentava parar, o tempo que Felipe não concebe e o tempo real, reorganizando as relações e desenvolvendo o amor que finalmente surge e toma conta do pai, que resolve crescer, trabalhar, ser pai efetivamente.
A história aparece pautada na literatura, tudo parece ter significado através de uma interface com alguma referência literária. Assim a vida é compreendida melhor através dos livros, como se eles dessem sentido à realidade.
O pai compreende o mundo através dos livros e perceber que isso seria impossível para seu filho praticamente o destroça.
Descobrir o amor desse filho, descobrir o amor por esse filho, tudo isso acontece de forma paulatina, dolorosa e profunda.
Acho que poucas vezes vi algo tão genuinamente franco, tão corajosamente franco.
Tezza foi laureado com vários prêmios ( Bravo!, APCA, Jabuti , Portugal Telecom) e tudo indica que ainda irá receber mais alguns, o que sinceramente, eu espero.